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Como já comentado em outros textos, no passado a pecuária de corte não era vista com bons olhos. Era caracterizada como atrasada, resistente à novas ideias e tecnologias e com falta de gestão.
No entanto, nas últimas quatro décadas, estas características vêm mudando muito. A pecuária sofreu uma mudança revolucionária baseada em mudanças tecnológicas e gestão. Como consequência, temos produtos com melhor qualidade (tanto para o consumo interno quanto externo), além de maior competitividade do setor.
Assim, as previsões para a cadeia produtiva da pecuária brasileira são cada vez mais promissoras, no entanto ainda ficam algumas dúvidas.
Pensando nisso, a Agromove realizou uma entrevista com um dos maiores nomes do ramo e coordenador geral do relatório do CiCarne/Embrapa “O futuro da cadeia produtiva da carne bovina brasileira: Uma visão para 2040”, Guilherme Cunha Malafaia.
Introdução
Guilherme Cunha Malafaia possui graduação e pós-graduação em Administração de Empresas pela Universidade da Região da Campanha (1994; 1995), mestrado em Economia Rural pela Universidade Federal de Viçosa – UFV (1998) e doutorado em Agronegócios na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS (2008).
É pesquisador classe A da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA, atuando no Centro Nacional de Pesquisa de Gado de Corte – CNPGC. É coordenador do Centro de Inteligência da Carne Bovina (CiCarne). É consultor sênior do Banco Mundial para análises de riscos no setor agropecuário mundial. É professor permanente do Programa de Pós – Graduação em Administração da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Foi pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na categoria Bolsista de Produtividade em Desenvolvimento Tecnológico e Extensão Inovadora (Nível 2) no ciclo 2017-2020. Sua linha de pesquisa tem um foco meso analítico, onde as formas de coordenação e as estratégias coletivas dos arranjos produtivos são elementos de estudo. É membro do corpo editorial e consultor ad hoc (sistema de avaliação de revista voluntario) de vários periódicos internacionais e nacionais na área de Gestão de Agronegócios.
Tem experiência na área de Administração de Empresas, com ênfase em Agronegócios, atuando, principalmente, nos seguintes temas: Eficiência e Competitividade de Cadeias Produtivas Agroindustriais, Cenários Prospectivos, Economia e Administração Rural, Análise e Avaliação de Projetos Agroindustriais, Análise de Riscos Agropecuários, Inteligência Competitiva.
Questões
Agromove: Como se faz uma previsão de tendência? De quanto em quanto tempo ela deve ser feita?
Guilherme Malafaia: É importante entender a definição de análise de tendências para compreender o comportamento do mercado no passado e no presente. Isso ajuda claramente a entender quais estratégias funcionaram no passado e qual é a tendência que irá ditar o futuro. Utilizamos a abordagem probabilística alicerçada no método prospectivo utilizando a técnica Delphi a partir da formulação de uma questão principal. A partir daí, busca-se identificar os drivers de futuro, os eventos possíveis de ocorrerem no tempo analisado, as tendências e as megatendências. A periodicidade de replicação do estudo varia muito de segmento para segmento, entretanto, o monitoramento das tendências deve ser contínuo.
AG: No capítulo sobre comercialização, é comentado o aumento na venda de animais vivos para países como a Austrália. Existe uma tendência de aumento nesta forma de comercialização, ela se sobreporia ao método de venda de carcaça, levando em consideração a melhor qualidade da carne abatida no local de consumo?
GM: O Brasil vem crescendo ano a ano a exportação de gado vivo. Estima-se que a exportação de animais vivos é até 35% mais rentável do que a venda do gado no mercado interno para o pecuarista. Tais movimentos tornam alta, a probabilidade de em 2040, o Brasil ter 10% de participação no mercado mundial de animais vivos com as raças para pecuária de corte. Essa tendência deve acontecer, quando observamos a crescente exportação de animais vivos para países árabes, Venezuela, Turquia e Austrália, que é um grande exportador de animais vivos para o mercado japonês. A exportação de produto primário não ser tributada no Brasil é um fator positivo para essa tendência, subprodutos valiosos, como o couro, são exportados com a carne, não gerando valor agregado e renda ao país. Entretanto, é preciso viabilizar a logística de transporte e o bem estar animal para que essa tendência se fortaleça ainda mais no Brasil. Não acredito que esse canal de comercialização se sobreponha ao modelo convencional, mas será uma importante estratégia em momentos desfavoráveis em termos de preço de arroba no mercado interno.
AG: As pessoas estão entrando, cada vez mais, em dietas vegetarianas e veganas. Até que ponto isso prejudica a indústria de carnes no Brasil e no mundo?
GM: Quase 30 milhões de brasileiros são adeptos à opção alimentar que, a princípio, bane a carne de qualquer refeição, qualquer tipo de carne. É um mercado que não podemos mais deixar de considerar. Por outro lado, a ONU estima que tenhamos até 2050, um aumento de demanda de 500 milhões de toneladas de proteína animal para dar conta do aumento demográfico global. Ou seja, teremos demanda forte que será abastecida por várias cadeias de proteína animal, vegetal e sintéticas. Isso elevará a competitividade no setor obrigando a cadeia produtiva da carne bovina inserir mais gestão e inteligência para o setor.
AG: Seguindo a mesma linha de raciocínio da pergunta anterior, os consumidores estão cada vez mais preocupados com o bem estar animal. Como essa exigência reflete na cadeia produtiva da pecuária e nas suas tendências futuras?
GM: Esse será o nome do jogo: bem estar animal. Produzir respeitando o bem estar animal ao longo de toda a cadeia, será mandatório e nenhum elo poderá ficar de fora. A propriedade, o transporte e o frigorífico serão exigidos a apresentarem certificados de produção com bem estar animal. A rastreabilidade, impulsionada pela expansão digital e pelos consumidores exigentes, será primordial para aderência do mercado aos produtos pecuários, em que fatores como bem estar animal, boas práticas produtivas e sustentabilidade serão temas chave para aceitabilidade do mercado, fatores estes que, em contrapartida, eliminarão do mercado aqueles que não se adequarem à nova forma de consumir da população.
AG: Como a atual situação da pandemia Covid-19 afeta a comercialização interna e externa de produtos bovinos?
GM: Duas tendências se verificam claramente: 1) o empobrecimento da população global, prejudicando segmentos premium e beneficiando produtos mais baratos, embora com maior preocupação com a qualidade e sanidade; 2) o medo do desabastecimento, que leva à maior preocupação com a “soberania alimentar”, redução das exportações, aumento de estoques e valorização de parceiros tradicionais. A pandemia poderá ser utilizada como pretexto junto à opinião pública para justificar padrões técnicos e sanitários mais rigorosos, exigências de certificação e rastreabilidade, embora tenha desviado momentaneamente a atenção de outras doenças animais e vegetais que prevalecem em regiões produtoras importantes (como a peste suína africana e a influenza aviária). A preocupação com o aquecimento global continuará forte somada à preocupação com a saúde e segurança alimentar. O conceito de One Health estará cada vez mais presente nas agendas institucionais.
AG: Hoje, nos açougues e mercados é possível encontrar carnes mais nobres em uma faixa de preço acima de R$ 60,00/kg e as menos nobres por volta de R$ 30,00/kg. O que pode justificar a alta no preço atual da carne do ponto de vista da cadeia produtiva e econômica da pecuária?
GM: Estamos vivendo um ciclo pecuário onde há uma grande valorização da reposição, fazendo que haja uma retenção de fêmeas no mercado, diminuído consideravelmente a oferta de animais para abate. Aliado a isto, o custo de produção do pecuarista que faz a terminação de animais é diretamente impactado pela valorização da reposição. Para completar o cenário, a escassez de animais prontos para atender a demanda doméstica sofre a forte concorrência do mercado externo, extremamente aquecido e com uma relação cambial favorável à exportação. Esse combo de fatores interfere fortemente no preço do mercado interno.
AG: Sabe-se que o maior argumento para críticas à pecuária no Brasil, é que cada hectare supre apenas 0,5 cabeça de gado e sabe-se também que métodos como melhor manejo de pastagens e intensificação são bastante positivos para que este argumento caia por terra. Para as tendências futuras, é possível prever uma maior produtividade por área de pastagem?
GM: Na última década, uma forte pressão de aumento de custos, derivada do aumento da remuneração e da escassez do fator de produção mão de obra, a valorização das terras e as crescentes restrições socioambientais levaram ao surgimento de uma terceira onda de desenvolvimento para a pecuária de corte para os próximos 20 anos. O estudo elaborado pelo Centro de Inteligência da Carne Bovina (CiCarne) da Embrapa, em parceria com Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), aponta para uma nova realidade na produção pecuária, tecnificada, intensiva, de ciclo curto, com padronização de carcaças e fluxo contínuo de produção para atender mercados de valor agregado, o que deve ser o modelo predominante da pecuária de corte nas próximas décadas. A intensificação será um caminho sem volta e um “divisor de águas” para quem quer permanecer na atividade.
AG: A região do MATOPIBA vem se mostrando bastante promissora para a cultura da soja. A pecuária também pode se mostrar presente nesta região?
GM: Há um crescimento considerável dos estados da conjunção MATOPIBA na criação de bovinos de corte, muito influenciada pela adoção de técnicas de integração lavoura-pecuária-floresta. Fator que atualmente é limitante, é a maior dificuldade de saída de produtos, tanto para abate quanto para comércio final de carne, fato que pode ser revertido pela previsão de novos investimentos em estradas e portos na região.
AG: Na sua visão, onde o produtor deveria investir para estar mais competitivo no futuro?
GM: Conhecimento, na inteligência do seu negócio. Na gestão da pecuária de corte em 2040, a maior profissionalização do setor, a condução da propriedade como uma empresa, a adoção de mais orientação técnica e a maior especialização de mão de obra serão propulsores de uma mudança na filosofia da gestão pecuária, tornando a pecuária de corte de alto nível gerencial na maioria das propriedades.
AG: Na atualidade, conseguimos ver, em algumas regiões boutiques de carnes. Esta seria uma nova tendência? Qual sua competitividade com relação aos açougues já conhecidos?
GM: O mercado de boutiques de carne está crescendo e atendendo um consumidor que está ávido por novas experiências. A estratégia principal dessas boutiques para agregar valor concentra-se no surgimento de cortes diferenciados usando e abusando do estrangeirismo. Consumidores ditos entendedores do churrasco “gourmet” pagam preço de picanha pelo “denver steak” (acém) ou “flat iron steak” (paleta), ou seja, acém e paleta com apelidos viraram carne nobre e ganharam valor porque o consumidor provou, gostou e reconheceu suas qualidades. O interessante é que isto não é um problema, mas uma das soluções possíveis para o Brasil se aproximar do mercado de carne “gourmet”. Afinal, não basta um novo nome em inglês: a novidade exige uma forma de preparo específica que tem custo e precisa agregar valor. Um único senão dessa prática, é que fazendo isso o nome fantasia é desvinculado do corte oficial que o originou, o que favorece o oportunismo. É salutar a criação de cortes novos, mas é necessário seguir a Portaria nº 5 de 8 de novembro de 1988 do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento, que padroniza os cortes no Brasil. As peças comercializadas embaladas deveriam ter anúncios e etiquetas contendo o nome fantasia e entre parênteses o nome do corte padrão que lhe deu origem.
AG: O que devemos esperar da demanda de carne brasileira pelo mundo? Quais serão os principais compradores? O que eles exigirão dos fornecedores?
GM: Segundo as projeções da OECD e FAO, em curto prazo, os preços reais da carne bovina no mundo cairão rapidamente devido à ampla oferta dos principais países produtores, como Argentina, Brasil e Estados Unidos, após um rápido aumento no estoque de rebanhos nos últimos anos. No entanto, à medida que os produtores reduzirem o ritmo e a taxa de crescimento da produção diminuir, os preços nominais aumentarão lentamente. A produção mundial de carne bovina tem projeção de aumentar em 6 milhões de toneladas equivalente carcaça (TEC) até 2029, e 81% desse aumento virá de países em desenvolvimento. No curto prazo, o suprimento dos diversos tipos de carnes se manterá influenciado pelo impacto da febre suína africana na Ásia e a redução do rebanho bovino na Austrália, devido a condições climáticas. Acredita-se que, após 2021, esses fatores estarão estáveis e uma gradual recuperação na produção mundial ocorrerá, liderada por Argentina, Brasil e Estados Unidos. Nos EUA, a produção avançará devido ao aumento do número de abates e do peso das carcaças, resultante de baixos custos de alimentação. No Brasil, o crescimento da produção se beneficiará da oferta abundante e favorável de recursos naturais, alimentação, disponibilidade de pastagens, ganhos de produtividade e, em certa medida, da desvalorização do Real. Prevê-se que o consumo de carne bovina cresça nos próximos dez anos e represente 16% do aumento total no consumo de carnes. Nos países em desenvolvimento, o consumo continuará sendo menor, cerca de um terço do volume consumido per capita em países desenvolvidos. A Ásia é a única região para a qual se projeta aumento de consumo per capita. Vários países que possuem alto consumo de carne bovina diminuirão, devido ao consumo de carnes de menor preço, suína e de frango. Surtos de doenças animais, restrições sanitárias e políticas comerciais continuarão sendo os principais fatores que impulsionam a evolução e a dinâmica nos mercados mundiais de carne. Incertezas relacionadas a acordos comerciais existentes ou futuros ao longo do período de previsão podem mudar os padrões de comércio. Em curto prazo, a magnitude e a duração do impacto da covid-19 são incertas, mas é esperado que a produção de carne e os padrões de consumo, especialmente referente a serviços de alimentação, sejam afetados. Em médio prazo, mudanças nas preferências e atitudes dos consumidores em relação ao consumo de carne, em vista de seu impacto na saúde, no meio ambiente, no bem estar animal e nas emissões de gases de efeito estufa (GEE) podem levar a um crescimento mais modesto da demanda.
AG: O aumento de investimento, intensifica a necessidade de insumos e aumento do volume de vendas. Como você considera a gestão de mercado realizada hoje pelo produtor? Qual a importância desta gestão com o aumento da intensificação para o futuro da pecuária?
GM: A gestão da maioria dos pecuaristas ainda se limita a anotações em papel ou nenhum tipo de controle. Com o aumento de custos e a pressão por produtos de maior qualidade, o pecuarista precisará de controle financeiro melhor do que tem hoje. Com isso, é provável que até 2040 a maioria dos pecuaristas faça a gestão de suas propriedades como uma empresa. Embora a cultura extrativista de parte dos pecuaristas possa atrasar esta mudança, as condições do mercado do boi e a disponibilidade de tecnologias favorecem as melhorias na gestão.
AG: Qual sua principal recomendação para quem deseja investir na pecuária de corte?
GM: Busque informações qualificadas, confiáveis e tenha uma visão integrada da rede de negócios na qual você irá fazer parte.
AG: Existe alguma mensagem ou conclusão que você quer deixar para o produtor que está lendo a sua entrevista?
GM: A melhor aposta é de muito desenvolvimento e sucesso para os bons gestores. Se produzirá mais carne em menos área, liberando terras para a agricultura e silvicultura; e se ocupará espaço no cenário internacional, exportando desde genética a produtos altamente especializados e de elevado valor agregado. O País terá uma pecuária altamente tecnificada, profissional, competitiva e uma referência global não só pelo gigantismo, mas também por sua tecnologia e qualidade.
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